Kaōs e carimbos

Alguns dias atrás recebi uma encomenda entregue por takkyuubin (宅急便 Serviço de entregas em domicílio). Na hora de assinar o recibo, em vez de pegar a caneta e escrever meu nome, como faria aí no Brasil, corri até a gaveta e saquei o meu mitomein (認印), carimbo de assinatura.

Para receber pacotes do correio ou cartas registradas, dá pra assinar com um carimbo feito de plástico, com apenas o sobrenome escrito, encontrado facilmente em lojas do tipo 1,99 (que no Japão são chamadas de lojas de 100 ienes ou hyaku (y)en, como se diz por aqui). Adoro fazer compras lá!
Foto: Angie. Encontrada na Wikipédia.


Quando vou ao banco e tenho de autenticar algum documento, de novo tenho de sacar um carimbo, desta vez chamado de ginkoin (銀行印, literalmente, carimbo de banco).

Para qualquer procedimento ou registro em que o nome de uma pessoa tenha de ser verificado além de qualquer dúvida, os japoneses usam carimbos especiais, que no geral são chamados de inkan (印鑑) ou ainda hanko (判子: Lê-se "ranco"), mas ganham nomes específicos dependendo de seu propósito, como os já mencionados mitomein e ginkoin.

Quando se trata de algum negócio mais sério, como fechamento de contratos, compra e venda de imóveis ou casamento, o carimbo utilizado contém o nome completo da pessoa de maneira bem estilizada e é chamado de jitsuin (実印).



O jitsuin é um carimbo tão importante que tem de ser registrado oficialmente na prefeitura mais próxima do local onde a pessoa mora. Ao registrá-lo, ganha-se um tipo de carteirinha, que também pode ser requerida junto com o jitsuin na hora de selar algum contrato de negócio ou matrimônio.

Sua confecção normalmente exige um profissional especializado, os materiais utilizados são de melhor qualidade (pedra, âmbar, madeiras nobres...nada de plástico!) e deve ser guardado num lugar absolutamente seguro, como um cofre, ou debaixo de sete chaves, como diz o dito popular.

Exemplos de materiais utilizados na confecção de um jitsuin: Ébano (madeira rara) e ágata (uma variante de quartzo)


Se você tiver a infelicidade de ter o jitsuin roubado ou falsificado, é como se alguém se apossasse de todos os seus documentos de identificação e ganhasse acesso livre e controle sobre toda sua vida como cidadão. Daria uma dor de cabeça danada ter de provar que sua "assinatura" não foi feita por você e que aquela compra de milhões não foi efetivada em seu nome...


Alguns exemplos de estojos para o armazenamento de inkan, em que as almofadinhas de tinta normalmente vêm junto. Alguém aí adivinha qual desses estojos abriga um legítimo jitsuin?


Mas, e quanto a assinaturas de verdade, aquelas feitas de próprio punho? Existem aqui no Japão? Sim, existem, mas como quase tudo que envolve escrita neste canto do globo, ganhou status de obra de arte.

Uma kaō (a palavra normalmente é escrita assim: 花押 e significa, literalmente, "que retém (a forma de) uma flor") é um tipo de assinatura altamente estilizada, marca ou monograma utilizado para expressar não apenas o nome do indivíduo, mas também suas mais profundas aspirações, sonhos e desejos.

Surgiram primeiro na China (em mandarim, fala-se huāyā, mas os caracteres utilizados são os mesmos adotados pelos japoneses) durante a Dinastia Tang, por volta do século VIII.

No Japão, começaram a ser usadas durante o período Heian (foi descoberta uma kaō de um tal de Sakanoue Tsuneyuki [1] datada do ano 933).

Primeiramente, foram usadas apenas por membros da aristocracia (funcionários da corte, nobres e samurais), mas, no final do século XI, pessoas comuns também puderam criar suas próprias kaō(s), embora tivessem de trazer junto o seu nome escrito de maneira simples para serem aceitos como confirmação de negócio.

Diz-se que, ao longo de sua vida, Oda Nobunaga (1534-1582), um célebre senhor feudal (daimyo) do Período Sengoku ("Guerras Civis" ou "Guerras Internas") trocou de kaō dez vezes. Isso porque, à medida que suas ambições mudavam de rumo (e se tornavam mais grandiosas), fazia-se necessária uma assinatura que refletisse essas mudanças. Ou porque, mesmo naquele tempo, já existiam pilantras falsários que se apoderavam de um exemplar de assinatura e o copiavam à perfeição, obrigando o senhor feudal a mudar periodicamente seus rabiscos...

Uma das dez kaō(s) utilizadas por Oda Nobunaga


Além dele, vários outros personagens históricos importantes também criaram sua próprias assinaturas estilizadas. Dentre eles, os ditos "sucessores" de Nobunaga na sua tarefa de unificar o Japão: Toyotomi Hideyoshi [2] e Tokugawa Ieyasu:

Kaō de Toyotomi Hideyoshi

Kaō de Tokugawa Ieyasu


Apesar de seu uso ter caído em declínio após o período Edo (1603-1867), esse estilo de assinatura ainda continua sendo usado por alguns políticos e pessoas famosas.

A leitura e identificação de cada kaō normalmente requer conhecimento especializado; livros inteiros dedicados ao assunto já foram publicados. Muitos desses livros foram escritos por um tal de Mochizuki Kakusen 望月 鶴川 [3], que parece estar se esforçando mesmo para ressuscitar a moda das kaō, mostrando-as como uma refinada obra de arte e, obviamente, lucrando com a administração de cursos para o aprendizado dessa assinatura estilosa.

Fontes de referência:

1) Os artigos "Hanko" e "Kaō na Wikipédia em inglês.
2) A página em português do site oficial da cidade de Ritto (Shiga-ken) sobre "Inkan".
3) A página em japonês sobre "História da Kaō", no site Kakusen Ryu.

Notas explicativas:

[1] Não tenho muita certeza de ter traduzido corretamente o nome desse indivíduo. Será que é Tsuneyuki mesmo? Se alguém puder me ajudar a confirmar (ou não) o primeiro nome desse personagem obscuro da história, fico agradecida: 経行. Nomes próprios são difíceis de ler em kanji até mesmo para os próprios japoneses, que sempre pedem que, logo em cima do nome escrito em caracteres chineses, venha a leitura dos mesmos escrita em um dos silabários mais simples utilizados por eles, hiragana ou katakana. Sem nenhum desses outros alfabetos pra me ajudar, acabei meio que "chutando" o nome do cara... Apenas o sobrenome dele consegui confirmar certinho: 坂上= Sakanoue.

Um adendo: pra quem ainda não sabe ou está lendo este blog pela primeira vez, eu sigo a ordem japonesa na hora de escrever os nomes: sempre o nome da família (sobrenome) vem primeiro, e por último vem o "primeiro" nome do dito cujo.

[2] Não providenciei nenhum link do Toyotomi Hideyoshi para a Wikipédia em português (ou qualquer outra fonte de informações nessa língua) porque considero o artigo de lá como desinformativo, muito mal-escrito e capenga. Se alguém quiser saber mais sobre um dos grandes senhores feudais do Japão, recomendo que compre um livro específico sobre o homem, porque na net não consegui encontrar nada que preste... Aliás, também não coloquei link para o Oda Nobunaga pelo mesmo motivo.

Que desgosto que dá ver nossa bela língua, esta última flor do Lácio, tão inculta, maltratada e pisoteada pelos seus próprios falantes!

[3] A Wikipédia (novamente ela!) traz o nome desse distinto como MochiDuki Kakusen. Dessa vez, não se trata de erro de nenhuma das partes: eu escrevi da maneira como o nome dele seria pronunciado; a Wikipédia optou por escrever da maneira como um teclado japonês transcreveria o nome do cara para alfabeto romano.

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